Cidade pode se desenvolver melhor com gestão descentralizada
Para professor da FAU, modelo é ideal para controlar a dinâmica de crescimento do uso do solo, da atuação imobiliária e dos projetos públicos de uma megalópole
Texto: Redação AECweb/e-Construmarket
Metrópoles como São Paulo não resistem a uma chuva localizada. Simplesmente param. O estado caótico das cidades brasileiras é histórico e estrutural, “elas sequer se aproximam de um planejamento racional, que dirá de um urbanismo sustentável”, afirma o arquiteto Pedro Taddei Neto, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) e vice-presidente de Arquitetura do Sindicato da Arquitetura e da Engenharia (Sinaenco-SP).
A construção das cidades é uma obra coletiva, que tem como principais atores os moradores, o poder público, os urbanistas e a indústria imobiliária, cada um no seu papel. Taddei exemplifica com a Rua Augusta, em São Paulo, que liga o centro da cidade aos Jardins: “Essa via foi aberta pela prefeitura numa região de chácaras, loteadas pelos proprietários e pela indústria imobiliária, dando origem aos bairros. Os urbanistas ingleses desenvolveram os Jardins, os franceses, a Avenida Paulista. Os brasileiros, já no século passado, atuaram na ligação dos trechos mais antigos aos mais novos, e na regulação do patrimônio construído ou sua substituição por novas edificações. Contribuíram para melhorar a atratividade da rua e para melhorar a fluidez do tráfego – ou para piorá-la. Como é uma via de passagem entre os bairros de moradia, a Rua Augusta se tornou propícia ao comércio e, as empresas concessionárias dos serviços de ônibus, tiveram seu papel”.
Impactos
O desenvolvimento da cidade, de amplo território e complexidade, trouxe um novo problema. “É muito difícil centralizar o controle sobre a dinâmica de crescimento, do uso do solo, da atuação imobiliária e dos projetos públicos de uma cidade tão grande como São Paulo. A implantação dos projetos públicos tem grande impacto no desenvolvimento imobiliário, tornando mais ou menos atraente um novo empreendimento. Abre a oportunidade de especular com terrenos que, no futuro, estarão no traçado de uma nova avenida anunciada, mas ainda não executada. A administração desse impacto deve ser feita em escala local, pois nem mesmo as informações fluem no tempo ideal entre as várias secretarias e órgãos do executivo, como a companhia de trânsito”, explica o professor.
Essa constatação leva ao conceito de gestão descentralizada. Ou seja, as subprefeituras deveriam ter poderes equivalentes aos que têm hoje a prefeitura. E a prefeitura deveria ter poderes mais abrangentes na esfera metropolitana. Pedro Taddei exemplifica com a cidade de Lima, no Peru, que ao longo das últimas décadas foi se tornando uma megalópole. “Ali houve uma reforma radical, que reduziu o território ao centro histórico da cidade e criou novos municípios nos distritos periféricos. Foi estabelecida uma prefeitura regional com grandes poderes e a prefeitura de Lima, apesar de sua importância, é mais uma entre tantas outras da região”, conta.
A inspiração veio do modelo de gestão urbana descentralizado da capital francesa. São apenas 2 milhões de habitantes na Paris intramuros e outros 12 milhões na região de Paris. “A viabilidade desse modelo para metrópoles como São Paulo é de ordem política. Nada mais”, diz Taddei, defensor do conceito. Entretanto, não basta dividir o território: é preciso criar uma prefeitura regional, abrangendo o que antes era a cidade e, também, os novos municípios. “Somente o centro expandido transformado em município já tem problemas monumentais”, afirma.
Uso do solo
Para Taddei, a distribuição da riqueza entre os municípios da região será mais equânime, principalmente se o poder público regional for mais forte do que os executivos locais. “Uma das exorbitâncias que existem nas regiões metropolitanas do país é que não há nenhum poder que regule o uso do solo. Porque, pela Constituição, quem tem poder sobre o uso e ocupação do solo é o município, o que promove a guerra fiscal. Assim, municípios próximos às capitais cobram Imposto Sobre Serviços (ISS) e Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) mais baixos, numa tentativa de esvaziar a metrópole, e acabam se adensando além do que têm condições de receber e prover de infraestrutura”, alerta o arquiteto.
“Ao transferir esse poder para a esfera regional, intermediária entre o estado e os municípios, todas as cidades terão o mesmo tratamento, com distribuição de renda e riqueza equânime. Em todas as regiões que houver conurbação, seja no deslocamento de pessoas entre a casa e o trabalho e os estudos, seja na gestão de serviços públicos, justifica que se crie um poder que harmonize o todo”. A dificuldade, segundo ele, é política porque a gestão regional retira poder do governo do estado e da prefeitura da capital.
Defensor da ideia, Taddei lembra que o sistema não está previsto na Constituição brasileira. “É um longo caminho, mas não se pode abrir mão desse debate”, diz. Até porque, comenta, boa parte dos problemas das cidades é constituído por falsos problemas. É o caso da administração do transporte urbano em relação à tarifa de ônibus. “A alçada de decisão sobre o assunto é dos municípios. No entanto, grande parte dos deslocamentos se faz entre os municípios da região metropolitana, através de serviços que sequer são municipais, como a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). O que não passa de um grande contrassenso, pois é um problema de aglomerações urbanas. O investimento e o poder de decisão sobre tarifas deveriam ser regionais” diz.
Sem planejamento
Pedro Taddei oferece como exemplo a fronteira entre os municípios de Osasco e Carapicuíba, zona totalmente conurbada. Para se dirigir ao centro de Osasco, quem mora perto da fronteira, pega o transporte lá e paga uma tarifa só. Já o usuário que está longe da fronteira, vai pagar duas tarifas, uma municipal e outra intermunicipal. Essa situação onera o morador e representa uma ‘deseconomia’ na oferta dos serviços, já que o poder público está gastando mais do que deveria. “Não se pode imaginar um sistema racional de ônibus numa região metropolitana com 20 milhões de habitantes, sem planejamento e gestão global”, diz, lembrando que São Paulo tem apenas a Câmara Metropolitana de Transportes para tentar harmonizar condições tão diversas. “É melhor do que nada, porém não tem poder”, sentencia.
Tratamento de esgoto
Outro serviço em parte atomizado é o de água e esgoto. Há municípios na Grande São Paulo que não estão conectados à rede de tratamento da Sabesp. São Bernardo, por exemplo, levou anos para ingressar no projeto de conexão com a estação de tratamento de Heliópolis. Antes disso, o esgoto era simplesmente lançado in natura nos rios e córregos. O que não faz sentido. Já São Caetano do Sul não tem fonte de abastecimento própria de água, mas tem serviço próprio de distribuição da água que compra da Sabesp – o que é mais racional, ou seja, tem um planejamento macro e há uma gestão micro feita pelo município. “Não há como administrar adequadamente situações como a de alguns municípios, que têm aglomerações que passam de um milhão de habitantes, com tais contradições”, enfatiza.
“O Brasil não dá um passo à frente em gestão urbana desde o século passado, quando toda a academia de urbanismo e de engenharia sanitária do país tomou consciência dos problemas. Nem mesmo os grandes projetos de Prestes Maia, na gestão urbana, e de Saturnino de Brito, no campo da engenharia sanitária, elogiados até hoje, se transformaram em políticas concretas. Por que isso não virou prática? Porque a política brasileira é a do clientelismo e da troca de interesses entre governantes e empresários”, declara.
Pedro Taddei Neto destaca que o sistema de gestão urbana adotado em Paris já foi muito debatido no Brasil, mas se perdeu diante de inúmeras dificuldades políticas. O último grande esforço foi feito na esfera da Constituinte de 1988, através da Associação para a Defesa da Reforma Urbana e das Regiões Metropolitanas, que presidiu e representou na Assembléia Nacional Constituinte. “A impressão que ficou é de que a legislação anterior que se tinha em alguns locais, como o estado de São Paulo, retrocedeu com a Constituinte. Com isso, as grandes cidades e as capitais vivem, hoje, um pré-caos”, finaliza.
COLABOROU PARA ESTA MATÉRIA
Pedro Taddei Neto – Arquiteto formado pela FAU/USP, em 1967, é mestre pelo Instituto de Meio Ambiente da França e doutor pela Sorbonne. Foi vice-presidente da Nossa Caixa e presidente da Emplasa. É diretor do escritório Arquiteto Pedro Taddei e Associados e vice-presidente de Arquitetura do Sinaenco-SP.