Construção civil vive dilema sobre como reciclar materiais
Com exceção de alguns materiais, como metais e vidro, que tem sua gestão de resíduos melhor resolvida, sobram dúvidas. Entenda mais a seguir
Redação AECweb
“Quando o assunto é resíduo, temos que pensar em desmaterializar, ou seja, não gerar”. Quem afirma é Sérgio Ângulo, PhD em Engenharia de Minas pela Escola Politécnica da USP e pesquisador do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas –, com especialização em gestão de resíduos da construção, tecnologia de reciclagem e desenvolvimento de materiais de construção. Segundo ele, o que ganha importância na Política Nacional de Resíduos, que entrou em vigor em 2010, é a possibilidade da criação de consórcios intermunicipais, até mesmo incentivados pelo governo federal para os pequenos municípios, que têm pouca disponibilidade de recursos financeiros e dificuldade de gestão e operação das usinas ou aterros sanitários. Ângulo lembra que os consórcios poderão funcionar tão bem quanto os existentes, há anos, na área de gestão da água, sendo que já existem algumas experiências bem sucedidas no interior de São Paulo para resíduos sólidos.
“As empresas passam a ter uma atuação mais efetiva, a partir do momento em que o governo estabelecer planos de gerenciamento de resíduos por parte dos geradores privados” , antecipa, referindo-se à idéia da logística reversa, em que todos terão que aderir a um planejamento, seja no âmbito regional como no nacional. “Essa política delimita o que é resíduo – tudo aquilo passível de reciclagem - e o que é rejeito – materiais não recicláveis e, portanto, destinados a aterros. E, ainda, prioriza a destinação dos resíduos sólidos de alta toxicidade e os de grande volume”.
A cadeia da construção civil foi enquadrada há quase dez anos, através da Resolução Conama 307, que estabelece critérios para a gestão dos resíduos que produz. “A Política Nacional de Resíduos Sólidos está permeada de conceitos presentes na resolução. Mas, antes de se falar em logística reversa com maior ênfase, como a das embalagens de adesivos e tintas, madeira, lâmpadas com mercúrio e gesso, a nova política exigirá um comprometimento cada vez maior das empresas fabricantes”, comenta. Isto significa, entre outras ações, estudos e pesquisas para identificar se determinado material poderá ser ou não reciclado.
“Neste momento, em que ainda se espera pelos mecanismos de implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, caberá à sociedade discutir, gerenciar os riscos e partilhar responsabilidades. Os fabricantes de materiais ainda se vêm diante de muita indefinição”. Com exceção de alguns materiais, como metais e vidro, que tem sua gestão de resíduos melhor resolvida, sobram dúvidas. “O que fazer com as embalagens de adesivos e tintas? E com o cimento amianto? Como resolver o problema da lâmpada de mercúrio? Quem ficará responsável pela destinação da tinta com metal pesado? Todo o gesso gerado nas áreas de triagem poderá ser captado?”, pergunta Sérgio Ângulo. Quanto à madeira, o questionamento é mais amplo, já que ainda não se definiu se toda a madeira é reciclável; ou se o processo ideal de reciclagem é a queima como energia. O professor lembra que há alguma experiência internacional, na qual pesquisadores e empresas podem se apoiar quanto à contaminação da madeira por tratamento biocida, bem investigada nos Estados Unidos, para identificar se essa toxicidade permite a reciclagem ou, se for perigosa, qual a sua destinação. Ou, em relação ao aproveitamento do gesso – alvo de pesquisas européias.
RESÍDUOS ‘CLASSE A’
Especialista em concreto e alvenaria, resíduos considerados ‘classe A’, o pesquisador do IPT diz que nessa área há um bom amadurecimento do mercado de reciclagem. “No passado, só havia a alternativa de utilizar esse tipo de resíduo da construção como material geotécnico, para preencher áreas degradadas - vazios urbanos da mineração. Temos, hoje, o fortalecimento do mercado privado de reciclagem voltado para outras aplicações. São empresas que trabalham com a desmontagem de edifícios e priorizam a triagem do concreto e alvenaria. Com o advento da tecnologia de pequenas usinas de reciclagem, tornou-se possível a reciclagem na obra. Isto significa qualificar o material agregado reciclado e aplicar no próprio canteiro”, relata.
Se, de um lado, gerar o resíduo é um problema, de outro, usar o resíduo no canteiro faz parte da solução. Ocorre que muitas empresas de construção ou de demolição se orgulham de terem programa de gestão de resíduo, destinando-o para usinas de reciclagem. “Mas não compram o agregado! Eles se livram do resíduo e não têm treinamento para utilizar o reciclado”, alerta Sérgio Ângulo, acrescentando que “essas empresas não podem permanecer como geradoras e meras selecionadoras de resíduos”.
Um dos principais entraves é a falta de capacitação técnica dos engenheiros de obras para utilizar esse novo material. Eles precisam de apoio tecnológico para, por exemplo, fazer os contrapisos com agregado de resíduo. É preciso definir um procedimento de produção, qualificar o resíduo, ter um engenheiro que saiba controlar a qualidade. “Temos pesquisa, sabemos como fazer e precisamos de difusão tecnológica para levar esse conhecimento ao engenheiro. O dono da construtora tem que decidir mudar os procedimentos de implantação de contrapiso e que tudo seja feito com agregado reciclado. Para isso, ele treina o engenheiro e o mestre de obras”, propõe o pesquisador. Mas, ainda não existem cursos que qualifiquem os profissionais. E, segundo Ângulo, nem tudo é responsabilidade da construtora: o caminho é setorial e com a participação do governo no financiamento de pesquisa e treinamento, especialmente para as pequenas construtoras, já que para elas o risco tecnológico é maior.
“Minha grande preocupação é com a construção informal, onde essas informações não chegam e não existem ações públicas, nem setoriais que incentivem o uso de casas pré-fabricadas – um novo mercado que se desenvolve no Brasil, porém comum no exterior. Essa é uma solução interessante para mitigar a cultura da construção artesanal com grande geração de resíduos, além dos riscos que assume o cidadão sem qualquer qualificação ao atuar como engenheiro. Quando ele faz a laje, ele mesmo escolhe o aço que vai usar, ele mesmo vai fazer e em terreno que pode ruir com a encosta”, diz. Verdadeira revolução cultural do ato de construir, a solução apontada por Sérgio Angulo passa, necessariamente, por políticas públicas que deveriam oferecer uma nova matriz tecnológica a custos menores como forma de incentivo.
Redação AECweb
SÉRGIO CIRELLI ÂNGULO é graduado em Engenharia Civil pela Universidade Estadual de Londrina (1999), com mestrado em Engenharia de Construção Civil e Urbana pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (2000), doutorado em Engenharia de Construção Civil e Urbana pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (2005), pós-doutorado em Eng. Minas pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (2006), e pós-doutorado pela Bauhaus Universität Weimar (2007). Foi docente do Departamento de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Londrina (2001) e Universidade Estadual de Campinas (2009-2010). Atua hoje como docente da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e como pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo. Especializado em gestão de resíduos da construção, tecnologia de reciclagem e desenvolvimento de materiais de construção.