Construsummit 2024: “Precisamos criar cidades melhores”
Em palestra provocativa e questionadora Raul Juste Lores mostrou como cidades do mundo se reinventaram após eventos climáticos extremos prezando pela boa arquitetura
(Foto: Agência J.Somensi)
A plenária de encerramento do Construsummit 2024 foi repleta de provocações, reflexões, cases e inspiração para arquitetos, engenheiros, empreendedores e demais profissionais que pensam o futuro das cidades. Raul Juste Lores, jornalista, escritor e criador do canal "São Paulo nas Alturas", fez muitos questionamentos sobre como o Brasil tem construído empreendimentos do segmento popular, médio e de luxo.
Com o tema “Como bons empreendimentos imobiliários podem se traduzir em diversidade e sustentabilidade”, a apresentação de Lores pretendia trazer exemplos e cases de cidades que criam sociedades mais coesas. “Essa imagem de São Paulo foi tirada com um drone há 15 dias, mas parece dos anos 1970. Tem um ar de Alemanha Oriental. É muito sério em 2024 ver um empreendimento como este de 7.300 apartamentos onde não há esquinas. Qualquer cidade admirada pelo mundo [Barcelona, Madri, Buenos Aires, Beirute, Telavive ou Nova Iorque] tem esquinas. É muito sério quando se faz 51 torres de 18 andares sem esquinas”, destacou.
O jornalista ainda lembrou que, por ser distante do centro, o empreendimento não foi assunto em mídia alguma. “Se fosse um prédio em Pinheiros causaria muito incômodo, mas quando se faz uma obra longe ninguém discute”, provocou.
Em seguida, Lores mostrou um condomínio em construção, do Minha Casa Minha Vida com 65 prédios – 11 mil apartamentos – ainda mais longe que o anterior. “Vemos o MCMV (Minha Casa, Minha Vida) de um governo que se diz muito engajado socialmente, mas de alguma maneira está na mão das empreiteiras fazendo projetos sem contrapartidas, sem beleza e criando bombas-relógio para o dia de amanhã quando teremos milhares e milhões de brasileiros longe de tudo. Fico imaginando o trânsito, os empregos e a vida de pessoas que moram assim”, criticou.
Mercado de luxo
Ele mostrou também um empreendimento do mercado de luxo em Vila Velha, no Espírito Santo. “Os arquitetos mais brilhantes do século XX [Antoni Gaudí, Frank Lloyd Wright] se inspiravam na natureza. Não competiam com ela. Quando você coloca um prédio espelhado azul e roxo na frente da praia tem algo errado. Equivale a ir de salto alto e paetês à praia. Não faz o menor sentido. E também não tem esquina. Imagina ir à praia para não ver ninguém? É inacreditável que estejamos fazendo isso com as nossas praias”.
Diálogo com a cidade
Um dos principais pontos questionados foi o diálogo dos empreendimentos com a cidade. “Temos uma dificuldade enorme de fazer coisas olhando para a rua (seja MCMV, classe média ou luxo). E colocamos as atrações dos empreendimentos longe das calçadas, onde ninguém vê. Daí a gente reclama que as calçadas são vazias, inseguras, que temos medo de passear com o cachorro à noite. Se não tem ninguém na rua nem seu cachorro vai querer sair”.
E citou ainda o prédio do arquiteto brasileiro, Isay Weinfeld, em Nova Iorque, que dá uma ‘lição de arquitetura’. É um prédio residencial privado que vai de uma rua a outra e tem um atalho, uma passagem pública no meio. Essa passagem é muito bem iluminada, para as pessoas andarem com facilidade e segurança.
O exemplo de Nova Iorque
O jornalista usou a cidade como benchmark porque, segundo ele, ela teve sua morte decretada seis vezes. “Nova Iorque foi barra pesada. Nos anos 1980 e 1990 tinha cerca de 30 Cracolândias e 3.500 homicídios por ano. Hoje são 300. As pessoas evitavam o Central Park após as 18h. Nova Iorque sofreu 11 de setembro, Lehman Brothers, a pandemia... Mas ressuscitou graças a um conselho local criado durante a pandemia para decidir o que fazer com a cidade. Quantos conselhos temos assim no Brasil, que não sejam encabeçados pelo governo da ocasião?”, questionou.
Lores contou ainda como a cidade se reconstruiu após o furacão Sandy, de 2012, que matou mais de 40 pessoas e deixou milhares desalojadas. Na época, ele morava lá e ficou sem luz, sem água, sem sinal de celular e 15 dias sem metrô. “Eu tinha que caminhar 40 quadras para carregar o celular, escrever e ter sinal de internet. Tomava banho em alguma academia e voltava andando mais 40 quadras. Era uma cidade escura e as pessoas andavam em grupos porque tinham medo”, lembra.
Nova Iorque inundou e o blecaute aconteceu porque uma estação elétrica ficou submersa. Mas a área de píeres começou a ser transformada em parques como uma espécie de ‘buffer de proteção’ entre o East River e o Rio Hudson para a cidade. E alguém tinha que bancar isso: o projeto era fazer o equivalente a dois Central Parks em uma década. A solução foi uma parceria com o mercado imobiliário. O prefeito foi dividindo áreas e delimitando onde e quantos prédios poderiam ser feitos em cada região. Em troca, os empreendedores tinham que fazer parques e mantê-los por 30-40 anos.
Havia uma disputa gigantesca não só pelas áreas com vista para a cidade, mas também por quem faria o melhor parque porque os empresários entendiam que isso valorizaria o m² do empreendimento deles. E, de uma hora para outra, começaram a surgir grandes parques na cidade. “Em uma década conseguiram mudar a paisagem urbana de uma cidade em que mudar qualquer banco de lugar vira um debate. E nós, vamos aprender com nossos traumas, ou vamos deixar a oportunidade passar?”, questionou fazendo um paralelo com os desastres do Rio Grande do Sul.
Em sua reconstrução Nova Iorque ainda optou por não apagar sua história. Mas entendeu que ela era parte do valor agregado desses parques. Um dos cases é uma usina de açúcar antiga que está virando um prédio de escritórios de luxo e ganhou uma torre do Norman Foster. “Isso permitiu a preservação do prédio histórico. E ninguém morreu. Acreditem”, ironiza.
Cases pelo mundo
Além dos questionamentos, o conteúdo de Lores também foi repleto de inspiração, cases e bons exemplos que poderiam ser seguidos pela arquitetura brasileira.
Um deles foi a nova sede do Facebook em Nova Iorque, que ocupa um prédio histórico público do início do século XX, rodeado por restaurantes. Outro foi a sede do Google que pertencia aos correios e à autoridade portuária e que é usada para atrair os funcionários para frequentarem o escritório. Com boa parte do time composto por jovens com menos de 30 anos, que falam cinco idiomas, têm salários altos e são disputados pelas concorrentes, o Google comprou o Chelsea Market para não fazer nada. Deixou-o intocado só porque os funcionários gostavam de frequentá-lo. A sede ainda faz da lanchonete uma espécie de Studio 54 dos dias de hoje. “Em certo horário do dia o pessoal que é jovem e solteiro vai lá para paquerar”, comenta.
Lores falou ainda sobre o fato de que em Nova Iorque as empresas se sentem responsáveis pelo bairro. Para que ele seja legal, seguro e animado, de modo que o funcionário vá trabalhar com vontade. “Lá as pessoas vão para o trabalho na melhor área da cidade, enquanto em São Paulo, na Faria Lima [reduto das empresas de tecnologia] não tem um café, nem uma sorveteria, só um bando de prédios espelhados. Me pergunto quando essas tendências do exterior vão chegar aqui?”, compara.
Arquitetura na educação das crianças
Bibliotecas que deem vontade de ler. Museus que estimulem o gosto por ciência. A palestra também trouxe bons exemplos do impacto da arquitetura na educação. “Não adianta falar para uma criança que ciência ou matemática são legais. A arquitetura pode ser usada para instigá-la e estimular o gosto pelo aprendizado na prática. “Crianças de Tóquio e de Barcelona aprendem o que é urbanismo sem ter uma aula chata. Aprendem na prática o que é uma calçada boa, o que é um quarteirão multiuso. Isso faz toda diferença”, pontuou.
Aproveitamento de viadutos, praças e pontos de encontro
Como usar a infraestrutura menos sexy das cidades a nosso favor? Como cidades vizinhas ocupam essas áreas que – quando inabitadas – se transformam em espaços de violência e estupro?
Buenos Aires ocupa os baixios de viadutos com restaurantes, quadras de esportes, bares e até um Chinatown. “Não é possível que na Argentina de 2023 e 2024 com inflação altíssima (200% ao ano), consiga fazer praças melhores que as nossas. E ocupar baixios como São Paulo não consegue. Temos que abandonar essa paralisia complacente”, provocou.
Segundo Lores, quem viaja pela América Latina se surpreende. Cidades no México, na Colômbia, no Chile e na Argentina têm espaços públicos melhores que os nossos. “Temos que melhorar muito nossas praças e pontos de encontro. Temos que exigir muito mais, cobrar muito mais do setor público para criar uma sociedade menos segregada”, opinou.
Exemplos diversos, desejo comum
O jornalista finalizou a palestra com uma série de cases proporcionando muitos insights. “São obras diversas, mas com um ponto em comum: quiseram fazer diferente e deixar um legado para as cidades”, destacou.
Um dos exemplos foi a The Opera House, em Oslo. Poderia ser uma grande caixa sem janelas usada por uma parcela pequena da população (afinal, nem todo mundo gosta de ópera). Mas os arquitetos do Snøhetta e o governo da Noruega decidiram que poderia ser algo que as pessoas pudessem escalar. O resultado é uma edificação com teto, rampa onde os skatistas podem andar. E que mesmo quando não há concerto algum é usada pelos moradores da cidade.
A Uniqlo – loja de fast fashion no Japão, do arquiteto Sou Fujimoto, também saiu do óbvio. Partindo da premissa de que a maioria dos consumidores tem um filho, o arquiteto criou um parque acima da loja, com escorregador, tobogã. Assim, a loja oferece um espaço para a cidade e atrai clientes. A mesma premissa é usada por uma grande incorporadora chinesa que fez da sua sede um arranha céu horizontal com jardins embaixo e pistas de skate. “É um parque que a cidade inteira usa. Não consigo imaginar um marketing melhor para eles”, comentou Lores.
O jornalista citou ainda o Paseo Gigena, em Buenos Aires, onde foi feito um retrofit e criado um prédio de escritórios, coworkings com jardim em cima, e espaço para restaurares e bares. É possível atravessá-lo por uma passarela ou até escalar o prédio à noite ou no final de semana. “Como vocês podem ver o mundo não está esperando por nós. Não tem desculpa para as nossas transformações serem tão lentas. O mundo mudou, tem pressa, a natureza mostra que não podemos continuar a fazer cidades como sempre fizemos. Precisamos criar cidades melhores”, provocou.