O desafio dos canteiros sustentáveis
Planejamento e gestão do canteiro garantem a adoção de boas práticas que vão da formalidade à destinação de resíduos. Mas exige comprometimento.
Redação AECweb
Mitigar os impactos ambientais dos canteiros de obras é apenas parte da sustentabilidade. O escopo é muito mais abrangente, envolvendo práticas que aumentam a produtividade e a qualidade técnica das edificações quando em uso. “O canteiro é uma etapa curta do ciclo de vida do edifício, mas responsável por todo o seu desempenho”, afirma a engenheira Clarice Menezes Degani, doutora em Tecnologia e Gestão da Produção pela Escola Politécnica da USP. Ela defende que todos os envolvidos na execução de uma obra, independente de porte ou perfil, devem “ir atrás de tudo aquilo que impacta menos, incomoda menos e traz mais benefícios”. Afinal, são muitas as frentes que merecem atenção: geração de resíduos; consumo de água e de energia; segurança e saúde do operário; interferência na vizinhança durante a execução da obra – ruído, trânsito e poeira; e aspectos visuais do canteiro.
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SOCIAL
Clarice Dagani lembra que “o operário da construção civil é um trabalhador brasileiro que precisa de muita atenção”. É preciso treiná-lo e monitorar sua atitude em relação à segurança, de forma que transite pelo canteiro evitando acidentes. “Ele deve receber, também, informação de boas práticas em relação à saúde, higiene e hábitos alimentares que, depois, são levados para casa e para a comunidade em que vive”, comenta.
A formalidade das relações trabalhistas com empregados próprios e a extensão dessa exigência aos prestadores de serviços são fundamentais. “É preciso combater a informalidade”, alerta, relatando que grande parte dos canteiros problemáticos está nas mãos de construtoras que não se preocupam em contratar empreiteiros formais - esses não dispõem de mão de obra qualificada e treinada, têm grande rotatividade e nunca sabem quem estará no canteiro no dia seguinte. Isso gera desperdício, desatenção e impede uma boa gestão de resíduos, do uso racional da água e da energia. “As construtoras precisam entender que ‘o barato sai caro’, porque há muito retrabalho e perda de material – insumo adquirido e que vira resíduo –, exigindo mais gastos com caçambas para retirar”, reforça a engenheira.
O operário treinado em relação às ações de sustentabilidade no canteiro incorpora a linguagem e, quando os gestores chegam com uma novidade, ele já tem uma base e vai assimilar mais rapidamente. “O trabalhador que começou separando resíduos, ao ouvir que terá que adotar uma postura ergonômica diferente para executar uma alvenaria, vai entender com facilidade”, diz Clarice, que acumula anos de experiência em canteiros e pesquisa sobre o assunto. Prática comum em muitos canteiros, mesmo naqueles que contam com operários alfabetizados, é a adoção de símbolos e cores. Ela exemplifica com o uso de marcadores em amarelo na argamassa para alvenaria, vermelho no emboço para azulejo e outras cores. As caçambas de coleta seletiva de resíduos, além de terem as inscrições, recebem também os símbolos para identificar os materiais orgânicos, não recicláveis, metal, papelão, entre outros.
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RESÍDUOS
O primeiro passo da gestão de resíduos no canteiro, de acordo com Clarice Degani, é identificar quem está disponível para recolher e separar os materiais. “É o que chamamos de cadeia local para valorização dos resíduos”, diz, explicando que, paralelamente, é preciso mapear tudo o que oferece a região em que a obra está localizada. Assim, em um município bem estruturado, ela terá à disposição aterro sanitário formal, outro aterro de inertes para resíduos classe A do Conama, e cooperativas que fazem a reciclagem dos materiais classe B (sacaria, como papel e plástico, sucata ferrosa e vidro). Nos canteiros que têm alojamento que serve refeições é possível trabalhar com a compostagem do resíduo orgânico. Já os resíduos perigosos – tintas e materiais contaminados com óleo, graxa e combustível – devem ser descartados de forma correta.
Portanto, é preciso saber quem são os parceiros que vão retirar esses resíduos, ir até a cooperativa ou empresa, verificar o CNPJ e a licença para transportar o resíduo e operar. “Minha prática é a seguinte: a partir do cronograma da obra, identifico em cada etapa de execução uma quantidade e uma caracterização de resíduos diferentes. Ainda tendo como referência as fases da obra, estabeleço layouts do canteiro e localizo onde será instalada a área de coleta seletiva – preferencialmente, próxima à fonte geradora”, destaca, lembrando que o planejamento tem a função de, na pior das hipóteses, dar uma diretriz, porque em muitos casos, depois de iniciada a obra, a gestão de resíduos acaba se tornando apenas parcial.
Nunca é demais lembrar que o ideal é não gerar resíduos, minimizando perdas. A opção pela desmaterialização, ainda mais radical, representa consumir o mínimo de insumos, utilizando sistemas mais eficientes e com bom desempenho. Em ambos os casos, é preciso treinar a mão de obra, sistematizar e buscar a modularidade dos projetos, para ter um menor número de atividades dentro do canteiro na transformação do insumo. “Com isso, se evita pequenos recortes e quebras, e rasgos na alvenaria que geram resíduo. Se gerados, é preciso destiná-los”, diz a engenheira.
Situação comum hoje nas grandes cidades é a obra que nasce em um terreno onde havia uma edificação. “É preciso planejar a desconstrução e a gestão do canteiro. O ideal é inventariar todos os resíduos que serão gerados e aqueles que poderão ser reaproveitados. Por exemplo: conforme a granulometria dos inertes, é possível locar britadores para reduzi-la e usar para enchimento. Tive um canteiro onde, antes, funcionava o clube de uma empresa, com um estacionamento calçado com bloquetes. Havia uma rede de drenagem no novo empreendimento, que exigiu uma grande escavação e deveria ser preenchida. Depois da demolição e separação dos materiais inertes, em um espaço no canteiro misturamos o inerte com terra para o preenchimento. A obra ganhou, ainda, utilizando a parte dos bloquetes que saiu inteira para fazer todo o calçamento externo do novo edifício. Fizemos questão de usar as peças com as faixas amarelas do antigo estacionamento para comprovar a reutilização, e usamos até para calçar o meio fio. Isto só é possível porque planejamos”, conta, lembrando que o inerte também pode ser usado para fazer o contrapiso da obra ou, ainda, ser encaminhado a uma comunidade da região que saberá como empregá-lo.
ENTORNO
“Nos canteiros, os estandes de vendas são totalmente insustentáveis e não estamos conseguindo mudar essa cultura”, revela Clarice Degani, referindo-se a construção de verdadeiras casas em alvenaria ou drywall, com todos os acabamentos e sofisticação, e que, meses depois, são demolidas. Só reaproveitam os metais, louça sanitária, portas de armários e elementos de decoração. Para ela, em tempos de sustentabilidade, os estandes de venda deveriam ser abolidos. “O ideal mesmo é a tecnologia em 3D, no qual o interessado põe os óculos e visualiza o apartamento em detalhes. Além do desperdício, agride o operário que vê aquela casa construída, que ele nunca terá, ser demolida”, diz. As construtoras mais comprometidas já utilizam sistemas do tipo lego: quem visita, vê um apartamento completo e nem percebe que se trata de um cenário.
Outro ponto polêmico nos canteiros é o lava-rodas dos caminhões. Ela lembra que quando chove muito, a água se mistura com a do dispositivo e o canteiro vira um grande lamaçal, levando ainda mais sujeira para as ruas. E, dependendo da manutenção, o lava-rodas pode se tornar foco do mosquito da dengue. “Eu gosto da solução da brita sobre a terra aberta, dispensando o lava-rodas. Tem outra prática que começa com a inspeção visual dos caminhões na portaria do canteiro. Somente aqueles que entram com as rodas sujas, as terão lavadas antes de sair, porém, essa água é drenada”, sugere.
O excesso de automóveis gerado pela obra pode ser solucionado com a criação de um espaço para estacionamento no próprio canteiro ou, se não houver espaço, estabelecer convênio com estacionamento da região ou fazer alguma locação. “Mas deve ser feito um esforço, assim como com os tapumes que, no início da obra e até vender os apartamentos, estão firmes e bonitos, depois começam a se deteriorar e ninguém mais se ocupa de cuidar”, ressalta. Outro transtorno para a vizinhança e para o operário é a poeira, que varia em função da fase da obra. Tem seu pico logo no início, com as manobras de escavação e fundações. Em relação ao operário, existem as normas de segurança e saúde ocupacional na construção civil e os equipamentos de proteção. “Mas o vizinho não tem os EPIs”, diz.
A engenheira conta que “neste momento, estamos trabalhando em um projeto da FINEP – Financiadora de Estudos e Projetos –, que envolve quatro universidades (POLI/USP, universidades federais da Bahia, do Rio Grande do Sul e de São Carlos) para caracterizar essa poeira, ou seja, até que ponto existe material particulado nocivo à saúde, inclusive dos vizinhos da obra. Vamos investigar também a quantidade desse material, em três fases da execução: fundação e terraplanagem; execução de alvenaria e primeiros revestimentos; e serviços de acabamento interno. Pretendemos verificar se esta é uma questão de saúde pública ou de, simplesmente, um incômodo para os vizinhos da obra”, antecipa Clarice Degani, explicando que a medição será feita em canteiros das quatro cidades, antes e depois da adoção de boas práticas para minimizar a emissão de poeira.
Redação AECweb
Clarice Menezes Degani, Engenheira Civil, Mestre e Doutora em Tecnologia e Gestão da Produção pela Escola Politécnica da USP, Especialista em Gestão de empreendimentos de construção civil pelo PECE/USP, participou da equipe técnica para experimentação da certificação ambiental de edifícios francesa démarche HQE pelo CSTB (França). Atualmente atua como consultora para projetos e construções sustentáveis, é pesquisadora no projeto FINEP na temática de minimização de impactos ambientais de canteiros de obra, sócia-curadora do CBCS (Conselho Brasileiro de Construção Sustentável), no qual participa dos comitês de Avaliação da Sustentabilidade e Urbano, é membro ativo da equipe técnica de desenvolvimento e auditoria para a certificação Processo AQUA na Fundação Vanzolini e assessora da vice-presidência de sustentabilidade do SECOVI-SP.