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Madeira Lamelada Colada Cruzada: características do sistema construtivo

Cassiano Oliveira de Souza, Fernanda Belizario Silva, Ricardo G. F. N. de B. Pereira, Suelem Maurício Fontes Macena e Takashi Yojo, Laboratório de Tecnologia e Desempenho de Sistemas Construtivos do IPT

Publicado em: 03/03/2022

Texto: Redação AECweb/e-Construmarket

Coordenação técnica: Adriana Camargo de Brito
Comitê de revisão técnica: Adriana Camargo de Brito, Cláudio Vicente Mitidieri Filho, José Maria de Camargo Barros, Luciana Oliveira e Maria Akutsu
Apoio editorial: Cozza Comunicação

24/02/2022 | 16h10 - O combate às mudanças climáticas é o maior desafio ambiental da atualidade. Para limitar o aquecimento global a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, é necessário que as emissões líquidas de dióxido de carbono (CO2) sejam iguais a zero até 2050 (IPCC, 2021). Para atingir essa meta no setor da construção, além da utilização de fontes renováveis de energia durante o uso dos edifícios, é necessário reduzir as emissões de CO2 na fabricação dos materiais de construção (WBCSD; ARUP, 2021). Nesse contexto, as construções em madeira despontam como uma das mais promissoras soluções, pois a madeira absorve carbono durante o seu crescimento, estoca o carbono em sua massa e libera esse carbono apenas ao término de sua vida útil. Isso torna a madeira um material com baixa emissão de carbono – ainda há emissões devidas ao consumo de energia para seu processamento e transporte – desde que seja proveniente de fontes renováveis, tais como florestas plantadas ou florestas nativas manejadas de forma sustentável.

Entre os sistemas construtivos de madeira, um dos que mais se destacam atualmente é a Madeira Lamelada Colada Cruzada (MLCC), ou Cross Laminated Timber (CLT) em inglês. A MLCC é um material compósito, usualmente fabricado com madeira proveniente de reflorestamento, tais como pinus e eucalipto. O sistema consiste em painéis formados por camadas compostas por tábuas de madeira maciça (as chamadas “lamelas”) dispostas lateralmente entre si, podendo ou não ser coladas lateralmente. As camadas são ortogonais umas às outras e são unidas por meio de adesivos específicos para uso estrutural. As camadas externas de painéis de MLCC possuem obrigatoriamente lamelas na mesma direção. A Figura 1 ilustra um painel de MLCC.

Representação esquemática de um painel de MLCC
Figura 1 – Representação esquemática de um painel de MLCC, com camadas alternadas ortogonalmente entre si e coladas com adesivo estrutural

Em função do arranjo das suas camadas, a MLCC tem lamelas de madeira atuando em ambas as direções, o que compensa a anisotropia da madeira (diferença das propriedades físicas conforme a direção, em função da orientação das fibras e dos anéis de crescimento da madeira), conferindo assim um comportamento estrutural mais homogêneo. Além disso, devido à colagem, a MLCC apresenta um comportamento de travamento entre as lamelas, o que confere ao produto maior estabilidade dimensional quando comparado às peças de madeira maciça. A colagem e o travamento permitem que sejam confeccionadas peças de grandes comprimentos, possibilitando o vencimento de grandes vãos, o que não seria possível com peças de madeira maciça. A MLCC recebe o termo “madeira engenheirada”, pois a composição desses elementos de madeira tem como objetivo aproveitar as características mecânicas da madeira em cada direção da forma mais favorável. Por exemplo, podem ser projetados painéis de MLCC utilizando-se lamelas mais resistentes nas faces externas e menos nas camadas internas, onde são sujeitas a menores esforços.

A produção dos painéis de MLCC se inicia pelo controle de qualidade das lamelas que os compõem, as quais precisam ser classificadas mecanicamente, para garantir o módulo de elasticidade desejado e conhecer a sua densidade e teor de umidade. O controle da densidade e teor de umidade são fundamentais para que a colagem ocorra de maneira eficiente. Como os painéis de MLCC têm grandes comprimentos e as lamelas precisam ser contínuas, elas são compostas de trechos de madeira isentos de defeitos, unidos por juntas coladas tipo “finger joint” (zig-zag). Isso também permite um melhor aproveitamento da madeira e reduz desperdícios. O próximo passo para a composição do painel é a colagem das camadas ortogonais entre si com adesivo estrutural, o qual necessita ter boa resistência ao esforço de cisalhamento e à altas temperaturas, para garantir um bom comportamento ao fogo. Os adesivos mais comuns são poliuretanos (PUR) e melamina-uretano-formaldeído (MUF), vide (ProHolz, 2014). A colagem das camadas é feita sob pressão, para garantir uma boa adesão, com controle de temperatura e umidade, em ambiente fabril.

A proteção da MLCC contra a biodeterioração é uma questão essencial para a durabilidade dos edifícios que utilizam esse sistema construtivo. No Brasil, além da possibilidade de degradação por fungos, existem diversas espécies de cupins que podem atacar os painéis de MLCC, dentre as mais importantes, os cupins subterrâneos, com capacidade de causar grandes estragos às construções em madeira. Para que se atinja uma vida útil de projeto de 50 anos, é necessário o uso de tratamentos preservativos aplicados em autoclave, conforme recomendação da ABNT NBR 16143 (2013). Futuramente, recomenda-se o desenvolvimento de pesquisas nacionais que possibilitem o uso de produtos e técnicas com menor impacto ambiental, que permitam atingir durabilidade comparável aos atuais tratamentos com metais pesados.

Os painéis de MLCC são produzidos em fábricas, já com as dimensões adequadas para a construção da edificação, sendo transportados para as obras onde são montados com o auxílio de gruas ou guindastes, favorecendo a rápida execução de projetos com a liberação imediata dos serviços posteriores. Além disso, podem incorporar outros elementos durante sua fabricação como, por exemplo, instalações elétricas. A união entre os painéis é feita por meio de ligações, usualmente metálicas, incluindo pregos, parafusos e chapas. Os painéis de MLCC podem ser utilizados para constituir paredes e lajes, com função estrutural, o que permite uma alta produtividade no canteiro de obras. Os painéis também podem ser utilizados em conjunto com outros materiais ou sistemas construtivos, por exemplo, estruturas de concreto armado ou de aço. A Figura 2 ilustra exemplo de construção de edificação em MLCC.

Construção em CLT em Portugal
Figura 2 – Construção em CLT em Portugal (Fonte: https://www.csustentavel.com/tisem-wood-construction-and-sustainability/)

A MLCC surgiu na Áustria e na Alemanha no início da década de 1990, apresentando-se como um produto inovador e que foi se tornando popular na Europa para o uso residencial e não residencial. Nos anos 2000, esse sistema cresceu significativamente com o movimento de construções sustentáveis, tornando-se uma alternativa ao concreto e à alvenaria, tipicamente utilizadas em construções na Europa (ProHolz, 2014). No continente europeu, a MLCC já está consagrada e seu uso está aumentando nos Estados Unidos, Canadá e outros países.

No Brasil, o uso da MLCC ainda é incipiente, destacando-se no uso residencial (OLIVEIRA, 2018). A fábrica da Dengo, uma edificação de quatro pavimentos localizada em São Paulo, representa uma edificação de maior porte (AMATA, 2021).

A MLCC apresenta vasta bibliografia referenciada e manuais técnicos internacionais, sendo os principais os austríacos (PROHOLZ, 2014) e sueco (Swedish Wood), baseados nos critérios estabelecidos no Eurocode, e os manuais canadense e estadunidense (FPInnovations e Binational Softwood Lumber Council), com base nas normas ASTM (American Society for Testing and Materials), além de materiais de fabricantes.

Observa-se que há alguns desafios tecnológicos a serem equacionados para que edifícios em MLCC tenham bom desempenho no Brasil, visto que o País apresenta condições ambientais e técnicas muito diferentes dos países onde esse sistema construtivo foi inicialmente desenvolvido. Devido às suas dimensões continentais, o Brasil tem uma variação muito grande de temperatura, umidade e precipitação. Portanto, é necessário adaptar as especificações da MLCC considerando essas diferentes condições, sobretudo porque a umidade é um fator de degradação importante para construções em madeira. Nesse ponto, os detalhes de projeto são fundamentais para proteger a madeira da exposição à umidade, tanto externa (chuva dirigida, lâmina d’água formada pelo escorrimento de água de chuva pelas fachadas, umidade ascensional do solo, umidade relativa do ar) quanto interna (áreas molhadas, áreas molháveis e possibilidade de vazamentos). Deve-se dar especial atenção às interfaces – por exemplo, na região das esquadrias – por serem os pontos de maior risco de ocorrência de infiltrações.

Outra questão importante é a segurança ao fogo das edificações em MLCC. O dimensionamento estrutural deve considerar a possibilidade de ocorrência de incêndio e de carbonização de parte da seção transversal das paredes e pisos. Além disso, pode ocorrer a delaminação das camadas da MLCC, sobretudo se os adesivos não apresentarem um comportamento adequado quando expostos a altas temperaturas. É desejável que o adesivo tenha resistência à altas temperaturas compatíveis com a madeira, sendo que a temperatura de carbonização (pirólise) da madeira é em torno de 280°C (SHAFFER, 1973 e FIGUEROA, 2009) como mostra a Figura 3. Detalhes construtivos também são importantes para o comportamento de edificações em MLCC em situação de incêndio, principalmente quanto à proteção das ligações (usualmente metálicas) contra a exposição a altas temperaturas. Também podem ser utilizados produtos retardantes de chama.

Perfil carbonizado (pirólise) de uma madeira
Figura 3 – Perfil carbonizado (pirólise) de uma madeira (Fonte: FIGUEROA; MORAES, 2009)

Por fim, é fundamental que a comunidade técnica brasileira disponha de informações para projetar e construir edifícios em MLCC de forma adequada. Nesse sentido, o IPT tem dado importantes contribuições: é sócio fundador e sede do Núcleo da Madeira, que é uma iniciativa sem fins lucrativos de representantes de diversos setores da cadeia construtiva da madeira, com o objetivo de dar apoio tecnológico ao desenvolvimento dessa cadeia no Brasil. O IPT também oferece o curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Arquitetura em Madeira, no qual a MLCC é uma das tecnologias abordadas. Por fim, os pesquisadores e as pesquisadoras do IPT participam ativamente em comissões de estudo e desenvolvem publicações visando à introdução apropriada desse sistema construtivo no Brasil.

REFERÊNCIAS 

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. ABNT NBR 16143: Preservação de madeiras – Sistema de categorias de uso. Rio de Janeiro: ABNT, 2013

CANADIAN CLT HANDBOOK – VOLUME 1 – Pointe-Claire – FPInnovations – 2019 – 812 p.

CLT HANDBOOK – CROSS LAMINATED TIMBER – U.S. EDITION – Pointe-Claire – FPInnovations e Binational Softwood Lumber Council – 2013 – 572 p.

FIGUEROA, Manuel Jesús Manriquez; MORAES, Poliana Dias de. Comportamento da madeira a temperaturas elevadas. Associação Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído., Porto Alegre, v. 9, n. 4, p.157-174, nov. 2009. Bimestral.

https://amatabrasil.com.br/primeiro-edificio-multipisos-em-madeira-do-brasil-e-inaugurado/, visitado em 06/12/2021

IPCC. Summary for Policymakers. Climate Change 2021: The Physical Science Basis. [s.l.] : Cambridge University Press, 2021. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg1/.

KARACABEYLI, E.; DOUGLAS, B. (ed.). CLT Handbook: Cross Laminated Timber. US Edition. Pointe-Claire: FP Innovations, 2013.

OLIVEIRA, G. A.. Cross Laminated Timber (CLT) no Brasil: processo construtivo e Desempenho. Recomendações para o processo de projeto arquitetônico. 2018. 192 p. – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

SCHAFFER, E. L. Effect of PyrolyticTemperatures on the Longitudinal Strenght of Dry Douglas Fir. Journal of Testing and Evaluation, v. 1, n. 4, p319-329, 1973

THE CLT HANDBOOK – CLT STRUCTURES – FACTS AND PLANNING – Estocolmo - Föreningen Sveriges Skogsindustrier – 2019 – 188 p.

WALLNER-NOVAK, M.; KOPPELHUBER, J.; POCK, K.. Cross-Laminated Timber Structural Design: Basic design and engineering principles according to Eurocode. Viena: proHolz Austria, 2014

WBCSD; ARUP. Net-zero buildings Where do we stand? [s.l: s.n.]. Disponível em: http://link.springer.com/10.1007/978-3-319-72796-7.

Colaboração técnica

 
Cassiano Oliveira de Souza – Pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo – IPT. Bacharel em Física (2007) e Engenheiro de Produção (2020). Possui sete anos de experiência em ensaios laboratoriais físicos e mecânicos para caracterização da madeira, na inspeção e avaliação de estruturas de madeira de prédios de valor histórico e em sistemas construtivos em madeira.

Fernanda Belizario Silva – Engenheira Civil (2008) e Mestre em Engenharia de Construção Civil e Urbana (2012) pela Escola Politécnica da USP. Doutoranda em Engenharia Civil na Escola Politécnica da USP. Pesquisadora do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) desde 2014, desenvolvendo trabalhos relacionados a desempenho de componentes, sistemas construtivos inovadores e Avaliação do Ciclo de Vida (ACV) de produtos de construção.

Ricardo Gomes de Freitas Nuno de Barros Pereira – Biólogo pela Universidade de São Paulo em 2007. É pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) desde 2009, onde atua com diagnóstico e avaliação da biodeterioração de estruturas de madeira e produtos derivados por organismos xilófagos, ensaios e análises de produtos de madeira e P&D&I de produtos madeireiros.

Suelem Maurício Fontes Macena – Possui graduação em Tecnologia em Construção de Edifícios pela Faculdade de Tecnologia do Tatuapé – FATEC Tatuapé (2014). Foi estagiária do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) no Laboratório de Árvores, Madeiras e Móveis na área de ensaios físicos e mecânicos de madeira e produtos derivados de madeira (2014). Atualmente é assistente de pesquisa no Laboratório de Tecnologia e Desempenho de Sistemas Construtivos (LTDC), atuando no Sistema de Gestão da Qualidade e em ensaios físicos e mecânicos, identificação botânica de madeiras e produtos derivados.

Takashi Yojo – Engenheiro Civil com graduação (1977), mestrado (1988) e doutorado (1993) pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Atua desde 1978 no IPT e tem experiência na área de Engenharia Civil, com ênfase em Materiais e Componentes de Construção de madeira, atuando nos seguintes temas: análise estrutural, caracterização de madeira e produtos derivados, biodeteriorização, sanidade biológica, ensaios não destrutivos com foco no patrimônio histórico e risco de queda de árvores.