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Risco de incêndio: o imbróglio dos condomínios industriais

Antonio Fernando Berto – Laboratório de Segurança ao Fogo e Explosões do IPT

Publicado em: 27/06/2022

Texto: Redação AECweb/e-Construmarket

Coordenação técnica: Adriana Camargo de Brito
Comitê de revisão técnica: Adriana Camargo de Brito, Cláudio Vicente Mitidieri Filho, José Maria de Camargo Barros, Luciana Oliveira e Maria Akutsu
Apoio editorial: Cozza Comunicação

foto de um incendio visto de cima
(Foto: Shutterstock)

27/06/2022 | 16h39 - Nota-se um aumento na frequência de casos de incêndios, Brasil afora, ocorridos em condomínios industriais implantados em grandes galpões subdivididos em módulos, que são ocupados por diversas empresas. Tais incêndios têm demonstrado a capacidade de propagarem-se rapidamente entre os módulos e de destruírem as instalações de várias ou mesmo de todas as empresas que os ocupam.

Ao lado das apurações oficiais com o objetivo de aferir responsabilidade criminal por cada ocorrência, ocorrem investigações realizadas por peritos contratados pela seguradora do próprio condomínio, ou de outros condôminos afetados, com o objetivo de atribuir responsabilidades pelo fato e justificar processos judiciais com o intuito de obterem-se indenizações e ressarcimentos em prol das seguradoras, frequentemente acionando a empresa que ocupava o módulo onde o incêndio se iniciou. Nesse tipo de ocorrência, agrega-se às perdas diretas, envolvendo estoques e ativos de produção, o risco de perdas indiretas de vulto. As perdas econômicas diretas podem ser imensas, pois várias empresas podem ser afetadas pelo incêndio, mas o risco de perdas indiretas, que aflige, especialmente, a empresa onde o incêndio se iniciou, pode ter consequências econômicas catastróficas.

Pretender responsabilizar a empresa ocupante do módulo onde o incêndio se iniciou pode não ser uma atitude correta, a menos que as investigações apontem de modo claro alguma circunstância que autorize essa responsabilização, ou ainda quando regras definidas pelo condomínio tenham sido descumpridas por estas. Ainda assim, deve-se sempre considerar que a propagação de um incêndio que supere os limites de um módulo dificilmente ocorrerá sem que haja um conjunto de fragilidades pré-existentes na edificação, que pode estar associada, inclusive, a deficiências da administração do condomínio. Nessas condições em que as fragilidades pré-existentes na edificação são o fator principal para a severidade das consequências do incêndio, a empresa ocupante do módulo de origem do fogo deveria ser considerada, mais propriamente, uma vítima.

Deve-se destacar que o fenômeno do incêndio não tem a simplicidade que muitas vezes as partes interessadas em sua investigação e seus respectivos peritos tentam atribuir. Há um longo caminho a ser trilhado antes que se possa responsabilizar a empresa ocupante do módulo de origem do incêndio.

Dotar uma edificação de condições mínimas de segurança contra incêndio no Brasil passa, fundamentalmente, por cumprir a regulamentação do Corpo de Bombeiros de cada estado que, além de determinar os sistemas de proteção contra incêndio que devem ser adotados, indica um conjunto de regras e de normas técnicas que devem ser consideradas em suas respectivas etapas de projeto, instalação, operação e manutenção. Para o desenvolvimento dessas quatro etapas, a regulamentação do Estado de São Paulo, por meio do DECRETO Nº 63.911, de 10 de dezembro de 2018, atribui responsabilidades da seguinte maneira:

    As medidas de segurança contra incêndio deverão ser projetadas e executadas por profissionais legalmente habilitados pelos respectivos Conselhos de Classe (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia – CREA ou Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU) e cadastrados junto ao CBPMESP, exceto quando houver dispensa de apresentação de Anotações ou Registros de Responsabilidade Técnica;

    Compete ao responsável técnico e ao responsável pela obra adotar, dimensionar e instalar corretamente as medidas de segurança contra incêndio, conforme o disposto no Decreto e nas normas técnicas afins;

    Nas edificações e áreas de risco, é de inteira responsabilidade do proprietário ou usuário, a qualquer título: I) utilizar a edificação de acordo com o uso para o qual foi projetada, nos termos da licença outorgada pelo CBPMESP; II) realizar manutenção e testes periódicos das medidas de segurança contra incêndio existentes no local, atendendo às disposições das normas técnicas específicas tomadas como referência nas instruções técnicas, estabelecidas no regulamento, com a devida emissão de relatórios comprobatórios; III) efetuar, periodicamente, treinamento com os ocupantes do local, bem como manter atualizada a equipe de brigadistas e os planos de emergência; IV) providenciar a adequação da edificação e das áreas de risco às exigências estabelecidas.

Essa última questão, no caso dos condomínios industriais, deve necessariamente implicar regras condominiais associadas ao tema da segurança contra incêndio e à existência de uma administração profissional subordinada ao proprietário (ou proprietários) do empreendimento.

É importante esclarecer que a regulamentação mencionada estabelece, basicamente, a necessidade de classificação do risco de incêndio considerando os fatores ocupação da edificação, sua altura e sua carga de incêndio e, a partir disso, de contraposição a esse risco por meio de regras de segurança contra incêndio.

No caso do estado de São Paulo e em outros estados onde a regulamentação paulista foi tomada como referência, é importante destacar que não estão estabelecidas regras de segurança contra incêndio específicas para condomínios industriais implantados em edificações subdivididas em módulos, com exceção da exigência, implícita, de que cada módulo corresponda a um risco isolado. Para que isto ocorra, entre os módulos deve haver paredes corta-fogo de isolamento de risco nos moldes do proposto na INSTRUÇÃO TÉCNICA Nº 07/2019, que integra o DECRETO Nº 63.911. De acordo com essa regulamentação, essas paredes, além de não poderem conter frestas, aberturas de portas ou outros meios que permitam a comunicação direta entre cada módulo, devem:

    Apresentar tempo mínimo de resistência ao fogo igual ao TRRF da estrutura principal, porém, não inferior a 120 min;

    Apresentar resistência mecânica suficiente para suportar, sem grandes danos, impactos de cargas ou equipamentos normais em trabalho dentro da edificação;

    Permanecer estável quando a estrutura do telhado entrar em colapso e ser isenta de engastamentos de armações dos telhados ou das coberturas;

    Ultrapassar 1 m, acima dos telhados ou das coberturas dos riscos, excetuando-se o caso em que existir diferença de altura nas paredes, de no mínimo 1 m entre dois telhados ou coberturas (esse prolongamento pode ser dispensado quando a cobertura for composta por laje com TRRF de 120 min); 

    Apresentar aba vertical ortogonal à fachada, solidária à sua estrutura, superando seu plano em 0,9 m (esta aba não será necessária caso a fachada apresente resistência ao fogo igual ou maior que a parede, seja solidarizada a esta e apresente os afastamentos preconizados entre aberturas).

O que se percebe, de modo generalizado nos condomínios industriais em funcionamento, que essas condições raramente são atendidas, com diversas inadequações das condições construtivas como um todo, e, especialmente nas paredes dispostas entre os módulos. Como resultado, os incêndios se propagam através delas, o que pode acontecer de maneira assustadoramente rápida. A rapidez do comprometimento dessas paredes pode se intensificar quando a cobertura for composta por estrutura metálica (muito comumente empregada nos galpões onde se instalam módulos para implantação de condomínios industriais) e esteja engastada à estrutura que integra as paredes de compartimentação. A situação torna-se ainda mais crítica quando essas paredes são compostas pelo sistema drywall (com gesso acartonado), dotadas nesses galpões de grande extensão e altura. Em diversas situações, a borda superior dessas paredes está estruturalmente conectada a vigas que fazem parte da estrutura da cobertura. Em caso de colapso de partes da cobertura, as paredes divisórias acabam, nessas condições irregulares, sofrendo danos estruturais que permitem uma aceleração da propagação do fogo.

Esses condomínios, normalmente, são detentores do Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros – AVCB, obtidos pelo proprietário (proprietários) do empreendimento e mantidos pela administração do Condomínio, certificando que no ato da vistoria técnica, realizada pelo Corpo de Bombeiros, a edificação atende às exigências quanto às medidas de segurança contra incêndio, nos termos da regulamentação vigente. É necessário esclarecer que a vistoria técnica integra as atividades de fiscalização do Corpo de Bombeiros, que se inicia com a análise do Processo de Segurança. Nas vistorias técnicas de regularização ou de fiscalização, por meio das quais o AVCB é concedido, renovado ou, eventualmente, cassado, compete aos representantes do Corpo de Bombeiros a verificação das medidas de segurança contra incêndio previstas para as edificações, porém isso é muitas vezes feito de forma visual e por amostragem, comprometendo uma acurada atividade fiscalizatória. Apesar do Corpo de Bombeiros não se responsabilizar pela instalação, comissionamento, inspeção, teste, manutenção ou utilização indevida, não é difícil constatar que uma simples inspeção visual permitiria detectar a condição construtiva desses galpões.

O AVCB nesse tipo de empreendimento, considerando a implantação de um condomínio industrial, é obtido antes da entrada e ocupação dos condôminos (empresas) em seus módulos, e leva em consideração que poderão ser ocupados não somente para atividades industriais, mas também por armazéns e depósitos. Tem-se em conta, normalmente, para a obtenção do AVCB, a ocupação mais crítica, em termos de risco de incêndio, ou seja, Grupo de Ocupação J-4 (depósitos com carga de incêndio superior a 1200 MJ/m³), que leva à necessidade de provisão de medidas de segurança contra incêndio mais restritivas, segundo a regulamentação. A parede corta-fogo entre módulos é frequentemente adotada para definir áreas de riscos isolados que não requeiram a instalação de sistemas automáticos de supressão e controle de incêndio, que no caso de edificações térreas enquadradas com J-4 corresponde a 4.000 m². A falha de uma dessas paredes, em situação de incêndio, é capaz de possibilitar grandes sinistros, envolvendo módulos além daquele onde o fogo se originou.

Ao lado dos aspectos construtivos, há grande preocupação com o tratamento dado aos sistemas de combate ao incêndio. O DECRETO ESTADUAL Nº 63.911, DE 10 DE DEZEMBRO DE 2018, por meio da INSTRUÇÃO TÉCNICA Nº 22/2019, para essa frente, admite sistema único de hidrantes em edificações com isolamento de risco desde que seja dimensionado em função de cada área e ocupação, considerando que deve ser adotada, como critério para sua concepção, a maior reserva de incêndio requerida e a condição mais rigorosa referente à vazão e pressão da bomba de incêndio. Há uma lacuna na regulamentação, contudo, porque não se explicita que na ocupação afetada pelo incêndio a tubulação do sistema de hidrantes pode ser destruída em razão das próprias chamas, comprometendo o funcionamento do sistema como um todo e que, portanto, é necessário que cada risco seja servido por um ramal próprio isolado dos demais por meio de válvulas de paragem. A atribuição dessa característica ao sistema de hidrantes deve ficar por conta do empreendimento, por ocasião do desenvolvimento de seu projeto e implantação. Na medida em que isto não ocorre, compromete-se a capacidade de funcionamento da rede de hidrantes e fragiliza-se gravemente a proteção contra incêndio de todo o condomínio, especialmente nas situações em que o isolamento de risco é feito por meio de paredes corta-fogo.

O risco de incêndio, assim, não se limita ao surgimento de um foco, que caracteriza apenas o princípio de um incêndio. O risco de que resulte em um grande incêndio depende, inicialmente, das ações da brigada com o emprego de sistemas manuais de combate (sistema de proteção por extintores e/ou sistema de hidrantes). Essas ações podem permitir tempo hábil para que o Corpo de Bombeiros chegue ao local ainda em condições de conter o alastramento, de modo a evitar proporções catastróficas do fogo.

Caso a ação da brigada inexista ou não seja eficiente, a evolução rápida do incêndio depende de diversos fatores, entre os quais tem caráter fundamental aquele associado ao projeto e construção da edificação e que correspondente às características de reação ao fogo dos materiais de revestimento, de acabamento, de tratamento termoacústico e de impermeabilização, que integram o sistema construtivo. A regulamentação dos Corpos de Bombeiros divide esses materiais em classes de reação ao fogo e requer, inclusive para o caso de condomínios industriais, que se enquadrem em categorias que não permitam o estabelecimento de condições favoráveis ao crescimento do incêndio, ou seja, condições que dificultem a sua rápida evolução. Busca-se retardar o desenvolvimento pleno do incêndio, favorecendo a segurança no abandono do local e a extinção do incêndio antes que ocorra a inflamação generalizada no ambiente de origem.

Em muitas edificações onde se instalam condomínios industriais, essas regras, apesar de extremamente importantes, são flagrantemente descumpridas. Assim, podem prevalecer situações de risco que ameaçam constantemente cada um dos condôminos e o condomínio como um todo: uma situação de princípio de incêndio (que não é rara ocorrer), antes de ser contida por uma ação simples com o uso de extintor portátil, pode atingir esses materiais e em pouquíssimo tempo, ficar incontrolável.

De acordo com a INSTRUÇÃO TÉCNICA Nº 10/2019 - Controle de materiais de acabamento e de revestimento, que integra o DECRETO ESTADUAL Nº 63.911, na solicitação da vistoria, para a obtenção do AVCB, deve ser apresentada a comprovação de responsabilidade técnica pelo emprego de Materiais de Acabamento e de Revestimento. Apesar disso, apenas para ocupações destinadas a reunião de público (ocupações do Grupo F), com lotação superior a 250 pessoas, além do comprovante de responsabilidade técnica, deve ser apresentado, na vistoria, laudo de ensaio dos materiais de acabamento e de revestimento elaborado por laboratório independente. Percebe-se, desta forma, que para os condomínios industriais, entre tantas outras ocupações, basta apenas comprovação de responsabilidade técnica, ou seja, apenas a declaração formal de cumprimento desta regra. Declarações falsas ou ARTs emitidas sem a cautela de se aferir efetivamente o atendimento das normas técnicas não são raras, possibilitando que o incêndio originado em um dos módulos encontre condições favoráveis para desenvolver-se e rapidamente alcançar a fase de inflamação generalizada.

A ocorrência da inflamação generalizada determina grande desenvolvimento de calor e de fumaça. Nesta situação o incêndio assume potencial para comprometer as características mecânicas dos elementos construtivos estruturais e de isolamento de risco. Ficam estabelecidas, deste modo, as condições para a propagação do incêndio para outros módulos do condomínio. Ainda, a fumaça por sua vez, tem grande mobilidade e pode surpreender as pessoas em outras áreas do condomínio.

O comprometimento dos elementos construtivos pode ser extremo e conduzir à ruina parcial ou total da edificação e/ou determinar a destruição das paredes de isolamento de risco. A rapidez do comprometimento dessas paredes pode se intensificar quando a cobertura for composta por estrutura metálica (muito comumente empregada nos galpões onde se instalam módulos para implantação de condomínios industriais) que esteja vinculada à estrutura que as integra. A situação torna-se ainda mais crítica quando essas paredes são compostas pelo sistema drywall (com gesso acartonado), frequentemente utilizadas nesses galpões, muitas vezes com grande extensão e altura.

As condições das medidas de segurança contra incêndio aqui relatadas constituem-se apenas em parte das questões mal resolvidas nos condomínios industriais. Pode-se afirmar que, praticamente, todas as medidas de proteção contra incêndio adotadas nesses locais padecem de problemas de mesma ordem. O condômino, incapaz de se dar conta da proporção grandiosa do problema, e sem receber qualquer alerta dos proprietários, que apresentam AVCBs muitas vezes que não atestam efetivamente a condição desejada de segurança contra incêndio, nem imagina que um eventual incêndio pode lhe trazer grandes adversidades. O imbróglio em que se mete nada mais é do que submeter-se, inadvertidamente, a um risco de grandes proporções, uma arapuca quando se observa que as próprias seguradoras buscam ressarcimentos pelas indenizações pagas aos demais afetados, sem ao menos se preocuparem em compreender a verdadeira natureza do problema, na maioria das vezes, situado nas condições construtivas da edificação e, consequentemente, responsabilizando os locatários, sem identificar que os locadores são, nessas circunstâncias, os verdadeiros responsáveis pela gravidade e extensão do incêndio.

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Autor

Antonio Fernando Berto — Possui graduação em Engenharia Civil pela Universidade de São Paulo (1975) e mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (1991). Atualmente é pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo, É coordenador de Comissões de Estudo do CB-24 da Associação Brasileira de Normas Técnicas – Sede. Atua principalmente nos seguintes temas: incêndio, segurança ao fogo, proteção contra incêndio, segurança contra incêndio e avaliação de desempenho de edificações.