Como reduzir emissões dos gases de efeito estufa na construção civil?
Medir as emissões em todos os elos da cadeia produtiva, divulgar a pegada de carbono de cada fornecedor, investir em projetos racionalizados, com menos perdas, e trabalhar com materiais mais duráveis são algumas das recomendações de especialista
Os efeitos das mudanças climáticas já chegaram, literalmente, às janelas de nossas casas, escritórios e demais edificações. Eventos extremos, tais como chuvas torrenciais ou secas prolongadas tem causado, entre outros fenômenos, cada vez mais enchentes ou incêndios florestais em locais onde, historicamente, isso não era comum.
Responsável por parcela significativa das emissões globais de dióxido de carbono, a indústria da construção civil ainda está devendo, junto com outros setores, respostas mais efetivas para a mitigação do problema. Seja no processo construtivo ou durante o ciclo de vida dos empreendimentos, ainda há muito por fazer.
Para compartilhar o que precisa ser revisto e modificado, convidamos para o Podcast AEC Responde a engenheira civil, mestre e doutora pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, Fernanda Belizário Silva, pesquisadora de pós-doutorado na Cátedra de Construção Sustentável no Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, na Suíça.
Ouça o áudio na íntegra e/ou leia entrevista, a seguir.
AECweb – Como reduzir emissões dos gases de efeito estufa na construção civil?
Fernanda Belizário Silva – Há uma série de medidas que podem ser adotadas para reduzir a emissão de gases de efeito estufa. As construções são produtos complexos, compostos de diversos materiais, com um ciclo de vida muito longo. É difícil ter uma solução única. A análise deve ser feita caso a caso. Para qualquer situação, entretanto, a primeira medida, a mais importante, é medir e quantificar as emissões, considerando o ciclo de vida dos edifícios e das infraestruturas como um todo. Ao fazer isso, será possível enxergar qual é a etapa do ciclo de vida que está contribuindo mais para as emissões e agir a respeito. A fabricação dos materiais de construção, por exemplo, é muito importante. Por vezes, vale a pena comprar um insumo que vem de mais longe, mas cujo fornecedor tem uma performance ambiental superior, ao invés de optar por um material local com maior pegada de carbono. Por isso, é importante fazer essa quantificação de uma maneira embasada, para poder guiar a melhor tomada de decisão. É o primeiro passo.
AECweb – Quais são as principais ações, pensando especificamente nas construtoras e incorporadoras, para a mitigação das emissões de gases de efeito estufa?
Fernanda Belizário Silva – Como mencionei, medir é muito importante, mas há algumas coisas que já sabemos, resultantes de estudos que já foram feitos. No Brasil, há baixíssima necessidade de aquecer as edificações. Dependendo um pouco da região, temos basicamente o uso do ar-condicionado. Por isso, nossa concentração das emissões se dá na etapa inicial do ciclo de vida, ou seja, naquela relacionada à produção dos materiais de construção. O cimento, concreto e revestimentos cerâmicos emitem CO2 na etapa de fabricação e por conta do transporte até a obra. Em geral, essa é a principal fonte de emissões de gases de efeito estufa relacionada às edificações brasileiras. Então, a primeira coisa que as construtoras devem fazer é um projeto bem-feito, racionalizado, com coordenação modular, para diminuir recortes e perdas de materiais nas obras. Outro ponto interessante: realizamos um estudo no passado com vários edifícios residenciais em São Paulo, com foco no projeto estrutural de cada um deles e as respectivas emissões por metro quadrado. E verificamos que, para a mesma quantidade de andares, ou seja, para a mesma solicitação em termos de carregamento, temos diferenças de até 100% na pegada de carbono. Olhando apenas para a estrutura, há casos de 50 kg de CO2/m2 e outros de 100 kg de CO2/m2. Isso significa que um projeto bem-feito, otimizado, certamente reduz a emissão de CO2. Outro ponto é selecionar fornecedores com base em desempenho ambiental. Há estudos demonstrando que a pegada de carbono pode variar de duas a três vezes para o mesmo material, dependendo apenas do fabricante. Repare: não estamos falando de substituição ou mudança na especificação. Selecionar o fornecedor com base no desempenho ambiental pode reduzir, significativamente, a pegada de carbono. E isso colabora para criar um movimento no qual toda a cadeia produtiva da construção civil declare as suas emissões de carbono. Existem algumas empresas que já possuem esses dados. Creio que é papel das construtoras, como compradoras desses materiais, solicitar tais informações.
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AECweb – Qual é a relevância da análise do uso das edificações ao longo de toda a sua vida útil para diminuir as emissões? Qual pode ser a contribuição do setor nesse sentido?
Fernanda Belizário Silva – A avaliação do ciclo de vida é um método indicado internacionalmente para quantificar não apenas a pegada de carbono, mas também de energia, de água etc. Nessas análises, olhamos sempre o ciclo de vida como um todo: do berço ao túmulo. Temos que ficar atentos para a reposição de materiais cuja vida útil é menor do que aquela estimada para o projeto do edifício. Nesses casos, não vale a pena optar por um material de menor durabilidade. Em relação ao consumo energético, por mais que a climatização no Brasil esteja praticamente restrita ao ar-condicionado e a nossa matriz seja razoavelmente limpa, consumimos, por exemplo, gás natural, que é um combustível fóssil, para utilização de água quente e cocção (cozimento) de alimentos. Isso constitui uma fonte de emissão de C02 durante a etapa de uso do edifício. Com as secas prolongadas que tendem a se agravar com as mudanças climáticas, é possível que tenhamos de acionar mais as termoelétricas e isso eleva a pegada de carbono da rede. Então, por mais que o cenário, hoje, seja relativamente confortável durante a etapa de uso, pode ser que não seja mais no futuro. O próprio uso do ar-condicionado, que é muito importante em algumas regiões, tem sido crescente e alguns gases refrigerantes nesses sistemas possuem potencial de aquecimento global altíssimo. Não que isso seja emitido ao longo do uso do sistema. Mas quando há necessidade de manutenção ou reposição do gás refrigerante, por vezes, corremos risco de escape.
AECweb – Qual é a sua opinião sobre o mercado de carbono, ou seja, sobre a comercialização de créditos para a compensação de emissões?
Fernanda Belizário Silva – Há dois tipos de mercado de carbono. Um deles é o regulado, no qual uma entidade – muitas vezes, governamental, mas não necessariamente – estabelece uma meta de redução de emissões de CO2 para determinados setores. Então, se determina, por exemplo, que a indústria do cimento tem que reduzir as emissões daqui até 2050. E aí existe uma curva, com base na qual são alocados direitos de emissão para cada empresa do segmento. Aí as companhias que operam abaixo desse limite podem emitir créditos que são comprados por empresas que estão desempenhando acima do estabelecido. O importante é que, no todo, haja redução. Trata-se de um mecanismo importante para as indústrias mais emissoras, que têm dificuldade de se descarbonizarem, tais como cimento ou aço, devido às características intrínsecas do processo produtivo.
AECweb – E o outro mercado?
Fernanda Belizário Silva – É o mercado voluntário, no qual não há um agente regulador, mas existem algumas empresas que operam, ou seja, que emitem créditos para quem necessita compensar as próprias emissões. Nesse caso, há dois tipos principais de créditos. Primeiro: aqueles advindos de projetos de reflorestamento, quando uma floresta vai ser plantada e as árvores em crescimento vão captar CO2 da atmosfera pelo processo de fotossíntese. Aquilo vai permanecer ali, na massa dela, enquanto a floresta estiver de pé. Isso pode emitir um crédito de carbono que será usado para compensar uma emissão que aconteceu em outro lugar. Isso, na minha opinião, é válido. Só que existe um outro tipo de crédito, bastante comum, que é o da emissão evitada. Nesse caso, emite-se crédito simplesmente para a preservação de uma floresta nativa ou preexistente. Embora isso possa ser um incentivo financeiro para a preservação, não há qualquer remoção de CO2 da atmosfera. Evita-se apenas que uma nova emissão aconteça. Creio que o caminho não é por aí. Se olharmos para as projeções do painel intergovernamental de mudanças climáticas e observarmos o quanto precisamos descarbonizar para limitar o aquecimento global, percebemos que devemos reduzir, ao máximo, em todas as atividades possíveis, sem exceção. E usar esses mecanismos de compensação com remoção – seja por um projeto de reflorestamento ou por tecnologias mais disruptivas de captura de carbono – para compensar o que é muito difícil de reduzir por limitações tecnológicas. Creio, então, que, ao usar um crédito de carbono, a empresa interessada deve ter muita certeza da modalidade que está usando: se é remoção, que considero válida, ou emissão evitada que, na minha opinião, não constitui uma forma adequada de abordar um problema tão relevante.
AEC Responde
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Colaboração técnica
- Fernanda Belizário Silva – Engenheira civil, mestre e doutora em Engenharia de Construção Civil e Urbana pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). Trabalha como pesquisadora de pós-doutorado na Cátedra de Construção Sustentável no Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (ETHZ), Suíça. Entre 2014 e 2023, atuou como pesquisadora no Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo, com estágios no Instituto Fraunhofer de Física das Construções (Alemanha) e no ETH durante o ano de 2019. Seus principais interesses de pesquisa são a definição de métodos, métricas e ferramentas para avaliação da sustentabilidade da construção e Avaliação do Ciclo de Vida (ACV) aplicada a produtos de construção e edifícios.